Poxa, seu José!
Conjunto Hospitalar do Mandaqui. Uma grande pista asfaltada até chegar à entrada do hospital. Lixo no chão, restos de comida e sinais de que alguém passou mal. A entrada da emergência fica à esquerda, atrás do prédio. Uma área de espera externa e sujeira de pássaros. Portas mudas. Chá de cadeira.
Tudo depende de quem está no plantão. É só um papel. Há mais de ano, sabemos que isso vai acontecer. O pessoal do próprio hospital disse. A médica de plantão não cede, nem aparece. Vamos atrás dela na entrada principal. Pega a viela de volta, vai para o centro do prédio.
– Não vou assinar.
– Mas, doutora, estamos aqui há horas. Foi um processo longo. E isso era esperado.
– É, mas o procedimento não é esse. Não sou a médica dela.
– Não, mas é colega dela. Confere no prontuário.
– Não posso. Essa área está trancada.
– Pega a chave!
– Não é assim.
– Liga pra sua colega! Vocês trabalham juntas. Pergunte a ela.
– Não tenho o telefone.
– Como não? Pede no RH. Eles têm.
– Eles não trabalham de domingo.
– Tem que ter um jeito…
– Aconteceu em casa, não posso fazer nada. Foi repentino. Você não concorda?
– Não.
– Um dia, estava viva. Morreu no outro. Como se explica, isso?
– Costuma ser assim mesmo: tá viva num dia, no outro, morre.
– Foi repentino. Não sei o que houve. Não posso fazer nada.
– E agora?
– Manda para o SVO.
– Não é IML?
– Não.
– E como faz?
– Tem que fazer BO.
– Onde?
– DP. E faça ASAP.
Siglas indigestas. Chega a enfermeira.
– Quer doar as córneas?
– Não, estou usando.
– Hum.. Não, senhora, da falecida.
– Da minha avó?
– Isso. Assim, vocês não têm que pagar as taxas.
– Taxas?
– Preciso dos documentos e de alguém para reconhecer o corpo.
A tia, filha da falecida, assente. Mas o avô não pode saber. Ele não permitiria. Não é o melhor momento para segredos, mas nem para discussões também. Vambora.
– Quem me acompanha?
– Oi?
– Precisa reconhecer o corpo. Para poder retirar as córneas. Procedimento.
– Tem sigla?
– Como assim?
– Tem sigla no seu procedimento?
– Hum… Não… Acho que não.
– Tá, eu vou.
– Vou avisar o Seu José.
Muitos corredores. E escadas. Um labirinto. Vamos para trás do conjunto. Uma longa passagem cimentada. No caminho, uma câmara de nitrogênio, aquela fumaça no chão de filme cult de terror. Podia ser piada, mas não é. Em seguida, o necrotério.
A encarregada para perto da porta.
– Olha, filha, fica tranquila.
– Tô tranquila.
– É rápido, é só pra ter certeza.
– Ok, entendi.
Muito CSI te faz imaginar um lugar organizado, uma sala limpa e uma parede de geladeira com gavetas. Geladeiras da linha prata. Compartimentos separados para cada corpo. Pare de ver TV.
Macas espalhadas, sacos pretos, tudo misturado, um cheiro forte. Aonde tenho que ir?
– Seu José?
– Oi?
– Cadê D. Theresinha?
– Quem?
– A senhorinha que chegou hoje cedo, onde o senhor pôs?
– Ah, ali.
– No outro box, Seu José?
– É.
– Não acredito!
– Que foi?
– Seu José, o senhor pôs ela do lado do “furadinho”?
– É..
– Poxa, seu José!
Ela lembra que estou ali.
– “Furadinho”?
– Um rapaz que invadiu a casa de um PM, sabe? Tá todo furadinho. Tem sangue pra tudo que é lado.
– Hum. “PM” é sigla.
– Hã?
– Deixa.
– Filha, não olha pro lado, tá? Concentra na vovó.
Não tem zíper. Ela só puxa um saco preto do outro lado da maca, de frente para mim. Um pé aparece.
– Caramba, ainda colocou ao contrário! Poxa, seu José!
Ela volta. Puxa a parte da outra extremidade, mais próxima. Uma cabeça ao contrário, como se plantasse bananeira. Olhos esbugalhados e familiares. Não enxergo direito a boca, mas acho que está sem dentadura.
Nem um movimento. Chegar mais perto significa passar pelo sangue no chão do “furadinho”.
– É ela?
– É.
– Tá, perfeito! Pode ir, então. Preciso começar, porque a córnea não pode secar. Sabe onde é a porta, né?
– Sei.
Porta aberta. Celular em mãos. Seria adequado tirar uma foto da fumaça de nitrogênio? Daria uma boa história para o blog… Seu José sai do necrotério.
– Tem que subir aquela escada pra voltar.
– …
– Pode ir.
Lá se vai a coragem para bater a foto. Poxa, seu José!
2 thoughts on “Poxa, seu José!”
Seus textos são muito bons Van!