Coisa de criança
– Mãe, posso levar um salgadinho.
– A mãe tá sem dinheiro agora. Senta aqui, enquanto eu passo as compras.
– Olha ali na gaveta dela, mãe, tá cheio de dinheiro!
– Oi?
– Moça do caixa, dá um dinheiro pra minha mãe, ela tá sem.
Thales tinha a boca maior do que seu tamanho: com apenas 3 anos e 2 meses, já falava mais do que vizinhas aposentadas aos 72. E o filtro não existia. A mãe, Helena, já estava acostumada, mas passava uma vergonha aqui e acolá.
– O que você quer de aniversário, conta pra titia?
– Ah, eu já tenho muito brinquedo.
– É mesmo? Quer uma roupinha?
– Não, quero um namorado pra minha mãe.
Helena evitava conversar sobre certas coisas na frente dele, mas eram só os dois na maior parte do tempo. Então, vez ou outra, Thales ouvia demais e…
– Querido, vem cá.
– Fala, mãe.
– Diz oi pra amiga da mãe, ela quer te conhecer.
– Oi, amiga da mãe.
– O nome dela é Marisa.
– É ela que você disse que é mentirosa?
E a energia? Não acabava mais. Parecia Menthos na Coca-Cola. Em dias tranquilo, ela levava o guri para a praça para ver se cansava no parquinho. Na semana passada, levou ele e a filha da vizinha, Julia, melhor amiga. Sentou num canto e ficou de olho. Tinha outra mãe no banco oposto, um pouco menos atenta, com a filha.
Quanto mais, melhor? Não nesse caso. A menina não foi com a cara da Julia. A melhor amiga do Thales, ao contrário dele, quase não falava. Vai ver, era por isso que se davam tão bem: amigos complementares, sabe? E a santa da terceira sacou que a Julia era tímida. É, criança é um amor, mas essa… nem tanto.
Julia ia no gira-gira? A outrinha corria lá, sentava e rodava depressa, sem deixar a menina entrar. Tentava a balança? A menina empurrava pra ela cair no chão. Arriscou um castelo na areia? Pois a danada chutou o castelo da Julia!
Ela fez uma última tentativa: foi para o escorregador. A coisinha passou na frente dela, sentou no topo e lá ficou, com a maior cara de paisagem arrogante do planeta. Helena, quieta, mas atenta, se roendo por dentro. A mãe número dois fazendo o que fazem as números dois: nem aí.
– Coisa de criança, né?
– Hum…
Cansada, impedida de escorregar, do meio da escada, Julia apelou para o amigo despachado. Ele costumava ser sua voz nas horas de angústia (como logo antes, na hora em que a avó dela, Dona Nice, proibiu que ela fosse com ele à praça, e ele argumentou que ela ia se divertir horrores).
– Thales!
– Ô, menina, deixa minha amiga escorregar!
– Ela vai ter que esperar.
– Escorrega logo, então.
– Não quero.
– Então, deixa ela passar, ô!
– Regra do parquinho: cheguei primeiro. Ela vai ter que esperar.
No melhor tom de imitação da mãe, com a mão na cintura, exatamente como a Helena fazia, Thales começou a contagem que toda criança teme:
– Um!
A menina deu de ombros. Ele aumentou o tom.
– Dois!
Ela riu da cara dele. Ele tirou a mão da cintura e mostrou o número com as mãos.
– Três!
Ela balançou as pernocas caras de pau e não se moveu nadinha. Ele escalou a escada, passou a amiga e só disparou um:
– Eu avisei!
Segurou as chiquinhas da moçoila e empurrou escorregador abaixo. Nessa hora, a mãe número dois deu conta. Levantou, começou a esbravejar, xingar, num chilique que bem mostrava a quem a danadinha tinha puxado. Helena não teve dúvida.
– Coisa de criança, né?
Abriu seu livro, sorriu e sentiu um quentinho subir, mas não foi de vergonha dessa vez.