Noite de pizza

Noite de pizza

“O de sempre” não bastava. Ainda que fosse o mesmo garçom toda vez, o pai e a mãe tinham que explicar que a pizza era de catupiry, mas sem molho. Isso, sem molho. Não, nem um pouquinho. A filha era muito peculiar quando se tratava de seus pratos. No caso da pizza de catupiry, tinha que ter o número certo de azeitonas (oito, uma para cada pedaço), tinha que ter orégano (pouco, para não matar o sabor), massa como toda massa vinha (não existia essa de “fina”, “grossa” ou “capaz de fazer malabarismo”; era a época em que os adultos fumavam à mesa) e, principalmente, nada de tomate ou cebola. Sem um pingo de molho.

O pedido era sempre igual e, ainda assim, todos faziam as mesmas caras de surpresa. O garçom torcia o nariz. O pizzaiolo recebia o pedido e confirmava duas, três, quatro vezes. Tem certeza? Sim, é sem molho. Humpf. Perto da mureta da cozinha, ela, o irmão e os seis primos se penduravam em cadeiras para verem o pizzaiolo jogando os discos para o alto, desafiando o chão e contrariando a ordem do pai de não brincar com a comida. As pizzas saíam do forno, os meninos corriam para seus lugares. Brigavam para ver quem ia sentar mais longe dos adultos, deixavam para ela, a única menina, uma cadeira ao lado da mãe.

Quando as pizzas chegavam à mesa, só ela não tinha que disputar seu sabor preferido com as outras crianças. O único que acompanhava a menina na catupiry sem molho era o avô. Ele nunca pedia sem molho, porque era adulto, e adultos gostam de tudo. A mãe sempre dizia que, quando ela crescesse, ia aprender a comer de tudo. A alegria do avô ao compartilhar da pizza sem tomate ou cebola fazia com que ela desconfiasse.

Na hora da sobremesa, uma ou duas explicações extras se faziam necessárias. Eram tantas bananas splits e sundaes de chocolate que a taça simples de sorvete de abacaxi corria um grande risco de se perder no pedido (geralmente, era ela que o garçom esquecia). Mas a menina não quer chocolate? Não. Nem cobertura? Não, por favor. Taça simples, sem cobertura, só o sorvete de abacaxi. Deixa o chocolate junto com o molho de tomate. De novo, ninguém disputava com ela. Nem a avó, que nunca pedia doce, mas roubava um pouco da sobremesa de cada um dos outros netos. Ela não ligava, sobrava mais sorvete de abacaxi assim.

O jantar acabava, pediam a conta, era hora de se despedir e ir para casa. Todas as tias queriam beijos. Não entenda mal, ela gostava das tias, mas nunca conseguiu entender por que deixar que colocassem saliva em suas bochechas repetidas vezes era demonstração de afeto. E, pelo que as tias diziam, limpar o rosto era ofensa – se ela estivesse com a cara cheia de sorvete, a mãe mandaria lavar; por que a baba não podia ser enxugada? Em dias de calor, ela até conseguia escapar dos beijos com cheiro de cerveja. O problema era quando esfriava. Ela não era de sentir frio, mas, se os adultos diziam que estava frio, tinha que pôr o casaco. O pai segurava a menina para pedir para se agasalhar e – pronto! – vinha uma tia…

Foi numa dessas noites de frio que ela ouviu aquilo pela primeira vez. Teve que parar para pôr a jaqueta amarela e viu aquela tia de cabelo roxo comentando com o marido que a menina era mesmo esquisita. Depois dessa, passou a notar os olhares dos garçons quando pedia sua pizza sem molho, as caretas dos primos para seu sorvete de abacaxi, e viu como todo mundo parecia mais confortável quando punha casaco. Percebeu também que a mãe pedia desculpa por ela – para as tias, para os primos, para os garçons. Não teve mais volta. Ela percebeu.

Passou a comer a pizza com molho. Se ninguém estivesse olhando, ela raspava o excesso com a faca e limpava no cantinho do prato. Desistiu de pedir sobremesa, já que só gostava daquelas de fruta. Hoje, às vezes, para se enturmar, quando lembra, ela veste uma blusa de manga comprida. E, quando saem para jantar, pede primeiro a pizza do filho: de brócolis, sem queijo. Ele não gosta de queijo. Não, não pode nem um pouco de mussarela, nem para dar liga. Parmesão nem pensar! Catupiry é queijo, sim, moço, não se atreva! Capricha nas azeitonas e no alho, por favor. As tias (-agora-avós) do menino olham feio, a menina não liga. Só fica preocupada quando o filho não bota o casaco.

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