Um velório e três causos – parte 1: a caixinha do caixão
Tem coisa que precisa curtir, maturar, chegar a um ponto certo. Tudo tem seu tempo. Inclusive as histórias que temos para contar.
Com a morte do meu pai, em 2015, pude ver o melhor e o pior das pessoas, de um jeito que só situações extremas podem mostrar. Até porque foi um ano em que a família passou por quatro velórios. Apanhamos muito, doeu demais. E ficou muito causo para passar adiante.
Separei três do dia do velório. Por onde começo? Vou por ordem cronológica.
Para termos um velório, precisamos de uma pancada de burocracia antes. Se você não sabe, e eu torço para que não saiba, tudo começa com a corrida pela liberação do corpo.
Levar o falecido para o cemitério não pode ser feito de carro próprio. Nem de 99 Táxis. Muito menos de Uber. Na cidade de São Paulo, este transporte é exclusividade do município. Você tem que ir até uma agência funerária municipal para solicitar. E é aí que chega o causo # 1.
Imagina a cena: você acabou de perder seu pai, deixou sua mãe e seu filho em casa, tudo que quer é dar amparo para eles. Agência funerária, o ser do outro lado da mesa, avisa:
– Leva umas seis horas para alguém ir buscar o corpo, e a senhora tem que ficar no hospital esperando.
– Mas, moço, é meia-noite. Tem certeza de que leva tudo isso? Não tem trânsito a essa hora.
– Tenho, senhora, o serviço é muito requisitado.
– E tem que esperar?
– Tem, sim.
– E tem que ser eu?
– É, a declarante do óbito ou outro familiar.
– Tá. Vou voltar para lá e…
– Mas, com cem, a gente agiliza.
– Com ou sem? Oi?
– Não, senhora, com cem.
– Sem o quê?
– Cem. Com “c” de “cash”, tá ligada?
– Agiliza?
– Cem reais em dinheiro, seu pai sai do hospital em meia hora.
– Ah…
– Ou pode esperar lá, até 6h, 7h da manhã. Noite cheia, sabe?
Não pirateio DVD, pago a TV a cabo, nunca paro em fila dupla, impostos em dia. Sou chata. Só que, naquela hora, a proposta me abalou. Eu só queria ir pra casa, estar com minha família, descansar um pouco para o velório. Meu irmão estava na outra ponta organizando tudo e disse que precisávamos estar prontos às 7h. E o relógio apontava quase 1h. Será?
Voltamos para o hospital. Desci para o morgue com a roupa dele. Acompanhei o transporte do caixão até o carro funerário, fui com eles até o Cemitério da Paz. Verifiquei a sala, me certifiquei das flores, neguei a presença de um padre, deixei tudo arrumado. Fui para casa com a primeira marca de lama e a certeza de que não sabia se tinha feito o melhor. Ou o que meu pai pensaria.