Eu queria ser um guarda-chuva
Já me decidi, vou acompanhar esse senhor. Ele é fechado, não sorri, mas anda devagar, com dificuldade, não consegue fugir da chuva. E a vida teria sido mais simples se eu apenas tivesse protegido meus donos anteriores da chuva. Quando Jonas Hanway me criou, foi isso que ele sonhou para mim. Porém, fomos ridicularizados. Uma hora, perceberam que estavam errados e decidiram criar mais de mim para usar na chuva; todavia, quando isso aconteceu, meu criador já tinha morrido. E eu fiquei sozinho.
Atrás de um novo dono, caí na conversa de uma fadinha azul sobre proteger um pobre grilo que servia de consciência de um boneco de madeira. Acharia tudo aquilo muito esquisito, não fosse eu também um objeto supostamente “inanimado”. Lá fui eu, flutuando com a fadinha feliz, fascinado por finalmente cumprir minha função. Que decepção… Eu servia de bengala e de paraquedas improvisado para o grilo. Acompanhei o safado por meses, nem sequer uma gota de chuva. A tratante da fada não apareceu mais. O máximo que fiz foi dar conselhos para o grilo passar para o cabeça-oca. Quando ele virou uma criança, parti. Gosto de crianças, mas, se ele já era uma peste como boneco, imagine como menino de verdade.
Não demorou muito a aparecer outro dono. Um figurão famoso de Hollywood, ia fazer um filme que tinha “chuva” no título. Quando ouvi isso, pensei: “É ele! Agora, sim, vou ser um guarda-chuva e ainda mostrar ao mundo o original criado por Jonas Hanway!” Você acredita, amigo, que o sujeito inventou de dançar comigo no filme? Um devaneio, um disparate, uma desgraça. Degenerado, doido, dança e canta na chuva deliberadamente. Fui desmoralizado: para que eu servia, se meu dono, na chuva, se molhava comigo em mãos? Impedi que me colocassem nos créditos do filme. Não queria o vexame no meu currículo.
Voltei para Londres. Conheci uma moça simpática que cuidava de crianças. Achou esquisito quando perguntei se alguma delas era um boneco de madeira, mas garantiu ainda assim que não. Fui com ela. Quando disse que ia me guardar dentro de sua bolsa, achei que não caberia, mas, ao entrar, me vi numa espécie de tenda bem espaçosa com toda sorte de objetos: araras de roupas, mancebos com chapéus, estantes de livros, um sofá e uma mesinha com abajur. Fora da bolsa, eu a vi transformar xaropes amargos em açúcar. E ela ainda me ajudou com meu truque de ser paraquedas – foi assim que aprendi a voar.
De vez em quando, surgia a oportunidade de proteger minha babá e as crianças da chuva. Eu estava finalmente fazendo meu trabalho, cumprindo meu destino. Às vezes, por diversão, salvava todos da chuva indo com eles para dentro de quadros pintados por artistas de rua. Ela dava vida ao desenho num mundo de melodias mágicas, músicas arrumadas com maestria majestosa. Fizemos isso com inúmeras crianças. Após centenas de famílias, a babá se aposentou e me deixou com um colega da escola de magia.
Meu novo dono era um meio gigante que decidiu que eu seria um excelente esconderijo para sua varinha. Ele não podia ser visto fazendo magia com ela, tinha sido proibido. Foi um procedimento bem invasivo, confesso. E quer saber o pior? Não foi o único. O grandão adorava um contrabando. Quando descobriu que eu tinha aprendido com a babá a guardar coisas enormes em espaços minúsculos, não parou mais. Carreguei um filhote de aranha gigante, um cachorro de três cabeças, um ovo de dragão, mas nada de chuva. Aquilo não era vida. Como o sujeito me usava para tocar os tijolos que abriam a porta de uma parede mágica para o mundo real, assim que decorei a sequência, saí correndo de lá.
Agora, conheci este senhor de quem falei no começo. Ele não é muito simpático nem gentil. Certamente, não é mágico. Contudo, eu só queria mesmo a chance de ser um bom guarda-chuva e honrar a memória do Jojô. E daí se ele anda rodeado de pinguins? Olhando bem, ele até se parece um pouco com um. Curioso… Deve ser zoólogo, porque, além dos pinguins, vive falando de morcegos. Enfim, não importa. É um senhor deformado, deficiente, há de precisar de um guarda-chuva. E isso é tudo que eu quero ser.
4 thoughts on “Eu queria ser um guarda-chuva”
Nossa Vani adorei quanta criatividade, vou ler os outros também, mas nunca havia pensado dessa forma com um simples guarda chuva e nem quem o inventou.
Parabéns VanessaSpirandeo me orgulho cada vez mais por você criatura maravilhosa
<3 Obrigada
É verdade.. acha criatividade. Muito bom. Adorei. Mas tadinho do guarda-chuva, nem consegue ser útil né… rs
Essa vida de guarda-chuva é difícil, né? rs