Sobre casais de velhinhos

Sobre casais de velhinhos

Corta para agora, meses depois. Casais de velhinhos caminhando de mãos dadas ainda me dão nos nervos. Fotos de gente em redes sociais comemorando bodas de metais preciosíssimos me deixam com raiva. Agradecimento online pela graça concedida, então, esquece – desfaço a amizade virtual na hora!

Eu lembro de estar na UTI com ele, de ouvir a médica entrar no nosso box e dizer para nós que ele não ia mais acordar. Que não sairia da UTI. Eu lembro. Lembro dos tubos barulhentos, violentos, empurrando o ar para dentro dele, o peito subindo e descendo no ritmo. Lembro da máquina apitando sem parar, aquele sem número de fios e números. Lembro do rosto ardendo a cada lágrima. E lembro que elas não paravam de cair.

E sabe o que mais eu lembro? A vadia da médica teve a coragem de entrar no box seguinte e dizer para o cara do lado, nitidamente mais velho e com uma família menos investida, que ele logo iria para o quarto.

Sim, sou um ser humano horrível, mas que filha da puta! O sentimento correto seria de alegria pela família que teria seu pai de volta. Me descobri ainda mais inadequada quando soube que ia perder meu pai. Foi aí que a alegria alheia começou a me incomodar. A vontade era de entrar lá e discursar: O quê? Esse sujeito aí vai pra casa? Não, doutora, pode trocar a porra do prontuário! Quem vai pra casa é meu pai!

Óbvio que só fiquei calada. Tenho um pingo de bom senso… Ou só não queria acrescentar vergonha à tristeza da minha família.

Gostaria de acrescentar que também fui um anjo no velório. Sim, teve velório. E uma vaca no meio do velório! (não, não é o animal. Já falei que sou horrível, né?)

– Pois é! Tô te falando! Meu primo se curou disso aí. Tava igualzinho teu pai. Na pior. Hoje, menina, tá ótimo!

Cala a boca, cala a boca, cala a boca!

– Sabe que vi ele ontem mesmo? Forte que nem um touro. Queria marcar um churrasco esse fim de semana na casa dele.

Minha mão ganhou vida própria, se fechou em punho. Pensei que poderia alegar insanidade. As pessoas iriam se compadecer, certamente…

– Uma coisa, né, que com seu pai não deu certo, meu primo está tão bem!

Argh! Todas as forças concentradas em tentar, pelo menos, não desejar o mal ao primo recém-curado da conhecida do meu pai. Por outro lado, ela estava pedindo.

– Seu pai era tão alegre, ia gostar dele!

Nessa, dei um passo para frente. Poderia ter sido ali.

– Licença, viu?

Ufa! Toda! Vai com Deus, querida, e não volta. No meio do velório, pô? Sal na ferida!

Não sei como, mas me contive. Tenho plena consciência do que é certo. Ou considerado certo. E me parece que é ficar feliz quando alguém se cura de uma doença grave. Ou quando alguém comemora bodas de uma caralhada de anos. Acredito que se espera que a alegria do outro nos contagie.

Pois é, só que, quando vejo os casais de velhinhos, só consigo pensar que deveriam ser meus pais. Eles eram o casal mais alegre do mundo, sabe? Jogavam vôlei juntos, bebiam juntos, passavam vergonha juntos toda vez que tocava os Beatles… Se bem que eu acho que só minha mãe passava vergonha, porque meu pai se envolvia demais cantando “Well, shake it up baby, now / Twist and shout” para se importar.

Enfim, eu sei. Tá, parei. Preciso ser uma pessoa melhor. Deleta essa história aí em cima. Melhor nunca contar isso para ninguém. Casais de velhinhos são fofos. É o que todo mundo pensa, né? E a normalidade é um padrão definido pela maioria, certo? O que minha mãe, meu filho iriam pensar de mim se….

– Filha?
– Oi, mãe?
– Você pode passar pela rua de trás para ir para casa?
– Claro, mas a gente vai dar uma volta maior.
– É que a praça fica cheia de casais de velhinhos caminhando a essa hora.
– E o que tem?
– E eu não queria ver. Não gosto mais de casais de velhinhos.

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