Voo solo
Tinha que ser ele. Meus olhos brilharam, montei e não queria sair. Ele tinha asas, imaginem só! Quem foi a mente brilhante que fez um triciclo em forma de avião? Genial! Era a motoca mais maneira que eu já tinha visto. E estava ali, na garagem da minha tia, parte da coleção de motocas dos meus primos. Eu tinha que andar.
Minha mãe avisou, disse que não poderia ir junto comigo, que eu iria sozinha com meus primos e a Tia Rose, babá deles, mas, caramba, era um avião! E eu estava às vésperas de fazer 5 anos, era uma mocinha, ela mesma dizia. Daria conta de passear sem minha mãe. Ela podia ir com a minha tia fazer as coisas de adultos para minha festa no sábado. Eu confiava no gosto da mamãe e queria ficar por ali para aproveitar essa chance única de andar num triciclo alado.
Mamãe não ficou muito feliz. Me encheu de recomendações, pediu mil cuidados, trocou meia dúzia de sussurros com a Tia Rose, deu um beijo em mim, no meu irmão, arriscou uma última vez:
– Não quer mesmo ir com a mamãe?
– Não. Vou ficar.
Suspirou, desistiu e entrou no carro com a minha tia. Eu fiquei ali, em cima do avião. Meus primos e meu irmão ainda estavam escolhendo as motocas deles.Enquanto eles escolhiam, fiquei admirando minha escolha: guidão protegido por um quebra-vento imitando uma moto, asas vermelhas da cor dos bombeiros desafiando para transformar a motoca em avião, três rodas bem seguras de plástico, pedais inteiros que cabiam meus pezinhos, banco confortável, painel com odômetro, velocímetro e medidor de combustível. Aliás, o tanque estava cheio, o que era bom, porque eu pretendia rodar bastante.
Acabei minha avaliação quando a Tia Rose abriu a porta da garagem. Ela orientou a gente sobre a rota, avisou sobre a distância segura para mantermos dela, e deixou bem claro que abortaríamos a missão passeio se saísse briga. Entendido. Pista liberada. Todos demos a partida.
A saída da garagem foi tranquila. Nosso roteiro previa o quarteirão inteiro e uma volta na praça, mais o retorno. Uma jornada digna. Percebi de cara a potência de meu aviãozinho. Fui pegando o jeito dos pedais na reta da rua dos meus primos. O lado direito puxava um pouco, mas o esquerdo compensava, eu só precisava dominar o ritmo dos dois para manter o voo em prumo. Tudo sob controle.
Saímos da rua para começarmos a contornar o quarteirão. Nos deparamos com uma rua de paralelepípedos. Turbulência à vista. Com o lado direito puxando, a asa sacudia mais. Coloquei mais força, sem me afastar muito da Tia Rose, para não comprometer o passeio. Deu certo, consegui estabilidade. O aviãozinho resistiu bravamente.
Saímos dos paralelepípedos para a rua de trás. Uma subida chata com asfalto bom. Tudo bem, a gente consegue, vamos lá, motoca voadora! Confesso que, na metade da ladeira, achei que ia voltar de ré, impotente. Culpa das asas que me deixaram mais pesada. Usei toda a potência das turbinas do meu aviãozinho. Ainda bem que tinha tomado meu leite, estava forte. Fiquei um pouco para trás, mas consegui. Subida concluída.
Viramos novamente, terceiro lado do quarteirão. Nunca tinha percebido como aquele quarteirão era longo, estava amando. Enquanto eu estivesse no aviãozinho, tudo estava certo. Esse lado era mais curto. Um voo solo, sem a mamãe, logo seria concluído com sucesso.
Na curva, eu avistei a descida. No fim da descida, pracinha. O melhor momento! Lá, a Tia Rose ia sentar com o livro dela, e a gente ia ficar livre para pedalar, voar, brincar, sem ter medo de se afastar demais e levar bronca.
Eis que algo suspeito aparece. Tinha escada na descida. Quem é que coloca uma escada no meio de uma rua? Acho que nunca vou entender as adultices. Tia Rose avisa:
– Desçam pela rampa do lado da escada, mas devagar!
Eu ouvi e, juro, tentei obedecer. Desci o mais devagar que pude. Mas meu aviãozinho… Ah, ele queria voar! Por isso, sequer tinha freios. A rampinha lateral dava com a parte da calçada que tinha um bueiro. Sem poder frear, eu alcei voo por três centímetro e, daí, me espatifei de cara no chão. Escorreguei para dentro da boca de lobo. Metade do meu corpo foi para dentro do bueiro; a outra metade ficou para fora, beijando o asfalto, segura pelas asas, que não permitiram que eu caísse inteiramente.
Resultado: meu lado direito, assim como o da motoca, ficou avariado. Bem avariado. Tia Rose teve que ligar para a mamãe. Corremos ao pediatra: “Ela vai sobreviver, mas a cara só volta ao normal daqui a algumas semanas. Não importa que a festa dela é sábado, não há o que fazer.”
Nas minhas fotos de aniversário de 5 anos, o que se vê depende do lado que o fotógrafo pegava: do lado esquerdo, a princesa Dra. Jekill, do lado direito, a monstrenga Sra. Hyde, versão infantil tupiniquim.
2 thoughts on “Voo solo”
Adorei o pior é que essa história é verídica
Essa parte é a mais legal rs <3