Era uma vez
Ou não era. Quer dizer, no começo, até era. Era bem divertido.
Clara era uma dessas porras loucas que tinha vários jobs, sabe? E Maurício… Bom, imagina um cara todo certinho, regrado, quadrado… Imaginou? Agora exagera nessas features. É ele. Diziam que ele bem que merecia o nome, Mauricinho. Mas isso não vem ao caso agora.
O lance é que foi na festa da firma, num bar que fecharam na Vila Madalena. Ele estava lá de bom funcionário participativo, ela era garçonete por uma noite, pra descolar uma grana pra praia no fim de semana. Foi o sorriso, a simpatia, a total falta de apreço pelo jeito certo de segurar a bandeja? Sei lá, ninguém sabe. Mas ele se encantou por ela. Algumas taças de vinho depois, num pós-festa a dois, ela começou a ver um certo je ne sais quoi nele.
A gente não precisa entrar em detalhes dos meses felizes que se seguiram a isso, porque, na boa, esses primeiros meses são o mesmo mimimi pra todo novo casal. Chato. Vamos dar um flash forward nisso aqui. Corta pra 11 meses e 3 semanas depois, quando o Maurício perdeu o emprego.
Sem grana para o aluguel e sem querer voltar pra casa dos pais, Maurício se alojou na casa da Clara. A definição de barata tonta se aplica. Ele começou a ver tudo que ignorou até aquele momento. Ela não tinha sistema para os mantimentos na despensa (aliás, ela não tinha despensa, só um armarinho capenga pra guardar meia dúzia de itens). Os dois sofás da sala não eram um conjunto, cada um de um jeito e de um tamanho – um deles, Maurício tinha certeza, era um caixote disfarçado. Horário? Não, não rolava. Entre os trampos, os bicos e os freelas, Clara saia quando precisava, voltava quando podia, comia quando dava. Era isso. E era en-lou-que-ce-dor.
A reação de um herói de história romântica seria dar a volta por cima. Tipo: sai, vai à luta, arruma outro emprego, bota a vida em ordem e bola pra frente. Maurício, todavia, arrumou outro outlet criativo. Reclamar virou seu novo hobby. Clara não fazia almoço ou esquecia a louça suja na pia? Sermão. Ligavam para um trabalho em cima da hora? Cara feia e resmungos. Tinha que dormir depois das 21h43? Discurso sobre a importância do sono.
Clara sacou, claro, que tinha que fazer algo. Espírito livre como era, achou que um momento de “aquece coração” seria providencial. Uma vez por mês, ela ia visitar um lar para crianças para ler e divertir a molecada. Era o sábado do futebol da firma, ele nem sabia. Só que, agora, não tinha mais firma. Que momento ideal para apresentar aquele projeto para ele. Era só ver aquelas carinhas felizes que ele ia se inspirar.
Tá que ele detestava surpresas, mas, mesmo assim, ela não contou aonde iam. Sábado, às 10h, estavam na Casa das Crianças da Lapa de Baixo. A leitura do dia era “Chapeuzinho Vermelho”. Clara levou um casaco vermelho com capuz, uma cesta de doces e pediu para Maurício colocar orelhas de lobo. Ele fez careta. Ela insistiu: iam dar vida à história, fazer ser um improviso, a molecada ia adorar.
Clara pegou um cobertor grande, colocou no chão da sala, pegou o livro e chamou as crianças. Elas se sentaram no chão, em cima do cobertor, ela se sentou em cima da mesa de leitura com a cesta do lado. Mauricio hesitou. Sentou na cadeira mesmo.
Ela começou, cantarolou que ia sozinha pela estrada afora e… Mauricio lembrou que, quem anda sozinha por aí, dá sorte pro azar. Aconselhou a Chapeuzinho Clara a andar mais depressa. Clara estranhou, mas entrou no improviso. Explicou que só fazia isso para levar doces para a vovozinha e… Ele logo avisou que ela não devia fazer isso com a idosa, ficaria diabética. Clara insistiu, disse que a avó tinha saúde de ferro, se exercitava sempre e que uns docinhos de vez em quando não fariam mal. Essa foi a gota pro Maurício, ele começou a falar sobre a imprudência desses jovens de hoje e dessa mania deles de achar que sabem de tudo.
E não parou por aí: reclamou da Chapeuzinho, falou mal da vovó, protestou sem parar. Clara levantou da mesa de leitura. Olhou pr’aquele arremedo de lobo vociferando contra tudo e decidiu: aquilo não era para ela. Se até como lobo ele ia reclamar agora, ela não queria mais essa vida. Predador se fazendo de vítima, onde já se viu? Pegou o cobertor e a criançada, levou para o jardim da frente e começou um piquenique improvisado com a cesta de doces e o que mais achou à mão na cozinha.
Absorto, o lobo Maurício nem percebeu. Continuou nonstop com aquele nonsense. Viu naquele momento sua chance de finalmente dizer tudo que incomodava. Improvisou, se sentiu um puta ator. Até vislumbrou a possibilidade de uma nova carreira. Discursou por volta de 45 minutos. Se sentiu aliviado quando terminou, orgulhoso do texto brilhante e verdadeiro que reproduziu. Até perceber que tinha falado sozinho aquele tempo todo. Na mesma noite, se jogou da ponte do Piqueri. Quem viu o salto diz que ele caiu reclamando.
4 thoughts on “Era uma vez”
Uau, que texto! Mais uma vez você me surpreendeu. Parabéns!
🙂 obrigada! Volte sempre!
A meta de 2017 é atualizar uma vez por semana.
Beijos nos três!
Van, a leitura e tão fácil e gostosa, fui me imaginando na história…
Que bom, Ju, fico muito feliz! Volte sempre <3