O limite do humor
20XX. Século 21. Tecnologia a toda. O mundo na palma da mão. Conhecimento amplamente disseminado pelos meios digitais. Estamos no que muitos eventos de comunicação (e, quiçá, de outras áreas) chamam de era da empatia. O olhar para o outro e a responsabilidade com o que comunicamos, o planejar pensando em um futuro melhor, inclusivo, e o cuidado com seu lugar de fala.
O debate é amplo: a necessidade de equidade, a distância entre homens e mulheres em termos de privilégios, e brancos e negros, e heterossexuais e LGBTs, e magros e gordos, e pobres e ricos. Contrapontos talvez, mas não autoexcludentes. A cultura da violência, como fugir dela.
Aí, numa mesa redonda de aula numa instituição acadêmica de excelência universitária, escuto a pérola de ninguém menos que o professor: “Você ouve o primeiro ‘não’ da mulher na balada e sabe que não é um não, que pode ser um sim. Tem que insistir.”
Esta sequer foi a primeira. Permitam-me contextualização, vamos dar um passo par trás. Passamos, antes deste episódio, por outros momentos em que a pilha foi se fazendo com máximas como “mulher chata é que nem borda de pizza: ninguém come” e “aparência é o que vale, maquiagem, cabelo arrumado. Ninguém contrata gente tatuada e de piercing”, dentre outras. Com o copo cheio, a gota de veneno explicitada no parágrafo anterior foi o que me transbordou.
Explodi num sonoro e claramente inesperado “não”. O silêncio tomou a sala. Os risos emudeceram. Os olhos se voltaram para mim. Dispensando minha oposição, o professor bonachão me disse que era só uma brincadeira para a aula não ficar chata, porque “é na balada, é assim mesmo”. Não é brincadeira pra mim. Insisti que “no means no”, esse tipo de fala incita o comportamento que leva ao estupro. Ele tentou continuar me invalidando; eu continuei me jogando na fogueira, expliquei que é machismo, que ele tem responsabilidade com o que fala, que ele reverbera opiniões, especialmente por ser professor. Ele, claramente nunca tendo sido questionado antes, parou. De surpresa. Mas claramente não entendeu.
Seguiu a aula visivelmente embaraçado e descompassado, fez uma piada (sua primeira) ridicularizando homens, e ali ficou claro o quanto o conceito passa reto: “viu, aluna militante, fiz uma piada feminista”, ele diz. Não é isso. Ser feminista não é ridicularizar homens. Feminista não é oposto de machista (caso interesse, consulte o verbete “misandria”.)
“Ah, mais que saco, esse tal de politicamente correto.” Olha, eu até concordo que o uso pode ser exagerado, mas a linha pode ser menos tênue do que você imagina. Pensa: quem sofre na piada que estou fazendo sou eu? Ou é o outro? E, se for o outro, ele tem mais ou menos condições de se defender do que eu, caso isso o agrida? Pensa que o limite é como a cerca de uma casa – você quer mesmo invadir o espaço alheio?
Humor seguro é o que fazemos com a gente mesmo, dentro do nosso espaço, respeitando a cerca. Todo o resto flerta com o politicamente incorreto. E você sempre tem responsabilidade pelo que fala. Se sua fala atinge alguém que pode menos que você, mesmo que “apenas” historicamente, reveja. Vai saber quem e como você vai influenciar. Ainda mais se você for professor.
Achou complexo? Na dúvida, guarda a piada.