A morte deixa sequelas

A morte deixa sequelas

A vida por um fio, o corpo ligado a dezenas deles. Uma máquina sanfonada que empurra e puxa o ar violentamente. Dosagens de remédio frias controladas eletronicamente. Um quadro branco com números rígidos.

Ele não vai acordar.

Hospital, recepção, elevador, liberação de visita, UTI. No leito ao lado, a médica avisa: vocês vão para o quarto ainda hoje. Do outro lado: amanhã, acho que vão para casa. Gente sorrindo, comemorando, alívio. Na vez dele…

Ele não vai acordar.

Bipes incontáveis. Bip, bip, bip. Ritmado, paciente, implacável. O enfermeiro descreve: “A pressão está caindo lentamente. As batidas de coração oscilam pouco, mas na hora, vão acelerar muito e, depois, cair até parar. Vai ser hoje, até o fim do dia.”

Ele não vai acordar.

Ele está ouvindo; abracem; conversem, falem o que precisarem. Não, não precisam obedecer o horário de visitas hoje. Sim, podem ficar todos. Sem celular aqui dentro. Vou fechar as cortinas para terem privacidade.

Ele não vai acordar.

Olhos fixos no maquinário. Céu escuro. A pressão começa a despencar. O coração acelera. Chegou a hora. Vocês precisam ir. Agora, tem que respeitar o horário. Saiam, vão embora. Não pode dormir aqui. Parem de olhar para o monitor!

Ele não vai acordar.

Trânsito, casa, banho. Uma mochila com a camiseta do time dele, uma bermuda e o tênis preferido. Documentos? Sim. Telefones? Sim. Lista de pessoas? Sim. Excesso de preparo porque era a única coisa que podia ser controlada? Sim e sim. Toca o telefone.

Ele não vai acordar.

Fios desligados. Sem ar. Sem leito. Sem chão. Uma lista enorme de causas, nenhum médico para explicar. Avisa gente, pega uma sala grande, encomenda flores. Recebe a família, os amigos, conta e reconta a mesma história. Relembra.

Ele não vai acordar.

Faz um ano. O bipe do monitor continua soando. E ele não acordou.

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